Um fumador, um caminheiro, um fã de uma banda de música, um columbófilo, saberão dizer em que ponto um prazer passa a vício? Em que fase uma atração passa a necessidade? Em que estágio uma curiosidade passa a satisfação?
Como uma mulher igual a todas as da minha condição e geografia, com família, filhos e amigos, numa comunidade e num trabalho regular, o adjetivo serve para os dois, não tenho tais respostas, nem tempo para as procurar junto dos tipos de pessoas enumerados ou de outros tipos. Tenho, sim, vontade de dizer que sei de algo que vicia, é necessário e satisfaz. A poesia.

Acontece julgarem-na inalcançável, circunscrita, produzida e destinada a círculos exclusivos. Também eu me achava indigna de ler, de entender ou de sentir fosse o que fosse vindo da poesia.
Os escritores de prosa levaram-me pela mão até à poesia. E agora, ainda com pouquíssimos versos absorvidos, e pouquíssimo tempo entre autores de poesia, declaro-a tão comum, presente e acessível como o pão, o futebol ou a lavandaria da esquina.
Recentemente, numa reunião formal ofereceram-me dois livros de poesia, reedições de obras de José Régio. Dias depois, no cinema, no último filme do mais conhecido agente secreto ao serviço de sabida majestade, essa mesma personagem morre, numa explosão à altura do seu charme e da sua fama, e num brinde feito à sua alma pelos seus colegas de enredo, um deles lê um poema, cujo autor desconheço até ao momento, mas cuja beleza, do texto e da cena, não olvidarei. A seguir, no ecrã do televisor da minha casa, uma ministra portuguesa recita José Mário Branco em plena sessão parlamentar. A adequabilidade da ação ou o seu contexto são irrelevantes, importa somente que a poesia teve uma voz que a disse.
Três situações em que me vi cercada de poesia. Como qualquer um se pode ver.
A poesia está no meio de nós. É universal, até grátis. E não esquecer mágica. E mais mágicos são os versos em que os poetas a tentam definir.
Vinicius de Moraes, no seu poema O operário em construção, dá a entender que poesia é começar a dizer não e aprender a notar coisas a que antes não se dava atenção.
Dedico a todos cuidadores o “aprender a notar coisas a que antes não se dava atenção”. Convido-os a procurarem a poesia.
Muitos cuidadores estão com pessoas maiores de idade. Muitos poetas versejam sobre o avançar dos anos e os contornos dessa caminhada. Num deles, o cuidador terá espelhada a pessoa de quem cuida. É uma sequência natural da literatura, a identificação com o nosso ser, com o nosso mundo, de que a poesia não é exceção. Muito pelo contrário.
Quando nos revemos no que um poeta escreveu aqueles versos foram escritos para nós.
Procurem o vosso poeta ou poetas, os vossos versos. Neles haverá conforto, consolo, compreensão, esclarecimento.
(…) Antes, eu buscava conhecer um lugar. Agora, apenas quero um lugar que me conheça.
Estas palavras são de Mia Couto, do poema O piso e o passo, e foram elas que me disseram porque é que a minha mãe, de 78 anos, doente, dependente, frágil, não se quer mudar para a minha casa.
Antonieta Félix